sexta-feira, 23 de outubro de 2009

O papel afetivo do papel

Essa semana, o jornal CineSemana, distribuído na rede de cinemas GNC (baixe o PDF aqui), publicou artigo meu sobre e-books, versão resumida de um texto que já havia sido publicado no segundo número da Cadernos de Não-Ficção com o título de Sou um ludita - ou, como detestar livros virtuais sem ter um único motivo racional para isso. Ao contrário do que o título sugere, eu não sou contra e-readers, só acho que o livro não vai desaparecer por causa disso.

Se hay e-readers, soy contra
Minhas experiências de leitura sempre foram bastante internas. Minhas lembranças de um livro são complementadas por memórias de onde eu estava, emocionalmente, enquanto o lia, e onde fui parar depois. E também por aspectos como a forma, o peso e o cheiro do papel utilizado naquela edição, assim como pelo próprio design do livro enquanto objeto, elementos que formam uma imagem simbólica daquela leitura na minha cabeça. Reparação, de Ian McEwan, me fez passar um sábado inteiro colado ao sofá, quase doze horas de leitura ininterrupta, acompanhado de um calhamaço de 448 páginas impressas em papel pólen soft macio, fino e agradável de folhear, sentindo a evolução da leitura conforme ia aumentando o número de páginas à esquerda do marcador, e diminuindo as da direita. Foi uma leitura que me impactou tanto, que passei quase um mês sem conseguir ler outra coisa. Da mesma forma que Harry Potter and the Deadly Hollows1 me deixou acordado até as duas horas da madrugada, ansioso para saber logo o final da história, segurando um livro mais grosso que um tijolo de seis furos, mas incrivelmente leve, graças a um papel ultramacio, leve e volumoso, encadernado com uma capa dura que não só acrescenta firmeza ao volume, como ajudava a dar impacto e imponência a uma leitura que chegava a mim como um grande blockbuster de verão. Ou seja, meu único argumento para preferir livros impressos, é o meu apego emocional por papel.

Por tudo isso, um aparelho leitor de e-books não soa atrativo para um bibliófilo ou colecionador. Da mesma forma que um cinéfilo não vai deixar de ver um filme muito aguardado no cinema (afinal, o filme foi pensado para esse formato); porque assim como a mítica em torno da sala de cinema e da projeção complementam a experiência sensorial de se ver um filme, acredito que o papel e a forma do livro como tal contribuem para a experiência de leitura, e não faltariam exemplos de autores que usam recursos de tipografia ou de design como parte da sua narrativa, praticamente impossíveis de serem reproduzidos por outro meio. Da mesma forma, não excluo a possibilidade de que um bom escritor incorpore a própria natureza do Kindle como parte de sua narrativa. Uma coisa não elimina a outra. Outro exemplo: colecionadores e conhecedores de música argumentam que a compressão digital dos arquivos elimina certas camadas de ondas sonoras que faziam parte da música gravada, e forçam, aos poucos, o retorno do disco de vinil ao mercado.

Da mesma forma, entre aqueles que têm a literatura como algo que ocupa um espaço importante nas suas vidas, e dão a ela o tempo que julgam necessário para desfrutar de um livro, continuarão existindo aqueles que saberão valorizar todas as percepções sensoriais que o próprio livro, como objeto, pode trazer. Talvez seja um apego à imagem romantizada e idealizada da figura do leitor, isolado em seu momento de leitura, com um livro em mãos e uma xícara de qualquer coisa ao lado, enfim, o tipo de coisa que faz com que eu me sinta um neoludita. Não que eu pretenda atacar usuários do Kindle no meio da rua, mas a tecnologia parece cada vez mais facilitar tanto a nossa vida, que esquecemos que as pequenas dificuldades inerentes a cada processo fazem parte da experiência que ele proporciona.

Pra finalizar, com a opinião de alguém muito mais gabaritado do que eu pra falar sobre o assunto, uma recente entrevista do designer Chip Kidd sobre o assunto. Ironicamente, ele também faz referências aos luditas.

3 comentários:

Carmencita disse...

Eu fiquei muito triste quando soube que decretaram o fim das inscrições rupestres por causa dos livros. Gosto de leitores eletrônicos. Assim como os dicionários eletrônicos, são muito úteis. Consigo consultar ideogramas muito facilmente. Mas eu jamais abandonaria meus livros e enciclopédias de bordado e costura. Capas de tecido finíssimas. Texturas e tessituras.

Tibor Moricz disse...

Pinturas rupestres evoluíram para as placas de argila. Essas evoluíram para os pergaminhos, esses para o livro impresso. É natural que este último acabe por desaparecer, substituído pelos kindles da vida. É a evolução. E não há apego ao papel que faça isso se alterar. Lamento? Claro. Sou reacionário, mas só até certo ponto. Não dá pra fechar a porta para o futuro. Ele vai entrar nem que precise arrombá-la a pontapés.

Carmencita disse...

Por que esta vírgula?
meu único argumento para preferir livros impressos, é o meu apego emocional por papel.


E as coisas sempre evoluem. No futuro haverá igreja sem dízimo: Igreja de Graça. Os fiéis assistirão aos cultos acompanhados de seus leitores eletrônicos para visualizar as passagens da bíblia durante as prédicas.

Enquanto isso, eu sento-me no meu sofá a ler um livro ou um e-livro, ouvindo um MP3 ou o meu rádio de válvulas sintonizado em longínquas ondas curtas. E sorvo o meu chá verde feito com a água que desde tempos imemoriais vem subindo aos céus e precipitando-se de lá infinitas e incontáveis vezes.

Enfim, tudo evolui. Até mesmo o câncer.

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