segunda-feira, 28 de novembro de 2011

Iconografia literária

A Companhia das Letras está relançando em edição econômica o livro Reparação, de Ian McEwan, e duas coisas me ocorrem vendo essa nova capa: primeiro, que foram bastante felizes na escolha da imagem do filme e na representatividade dela para o livro como um todo, e segundo que, ora vejam só, é o tão detestado (por alguns) movie-tie-in.



Lembro de à época do lançamento do filme (que no Brasil teve seu título janeaustenizado para Desejo e Reparação), ouvir conhecidos que foram atrás do livro antes da estréia, dizendo-se aliviados pelas edições à venda manterem à capa original de Raul Loureiro (se bem me recordo, as edições se limitavam a ter uma cinta aludindo ao filme). São publicos distintos, há quem inclusive prefira capas com as imagens do filme, e há os indiferentes que, como eu, só se incomodam quando a imagem em si fica feia – como, por exemplo, naquelas sobrecapas feitas para o Ensaio sobre a Cegueira, do Saramago, com cenas do filme de Fernando Meirelels, uns dois anos atrás (ainda que, naquele caso específico, as próprias imagens do filme em si, eram granuladas e cinzentas, imagino não havia muito o que ser feito, me pergunto se não teria sido um caso onde uma sobrecapa com o cartaz do filme, por exemplo, não seria mais efetiva?).



Nessa nova capa, recorre-se à uma cena do filme, não às artes promocionais, como os cartazes. É uma abordagem proxima a que a Penguin utiliza no seu selo Modern Classics, por exemplo. E sendo o filme Desejo e Reparação particularmente feliz em direção de arte e fotografia, o capista não só tinha um bom material para trabalhar, como soube fugir do clichê que seria estampar Keira Knightley na capa (voltaremos à ela mais adiante).

[Atualizado] Agradecendo ao Tuca, do blog o leitor comum, que me deu o toque de uma outra versão da capa da edição econômica de Reparação, que chegou a ser divulgada mas não impressa. Pessoalmente, eu prefiro a versão atual.



Em artigo publicado na revista virtual Cadernos de Não Ficção, publicada pela Não Editora, o cientista social Marcos Andrades Neves escreveu o artigo Iconografia Literearia, abordando justamente a relação entre cinema e literatura que se dá pela capa dos livros.


“Todos os exemplos compartilham ao menos dois pontos em comum: utilizam estratégias de legitimação em sua capa, e tais estratégias nem sempre dizem respeito à literatura. Aos pontos em comum, há igualmente dois níveis de observação para explicá-los: em sua camada mais sensível, as alterações na capa são uma forma de fornecer ao leitor informações necessárias para incentivar a compra do volume, assim como alcançar um público antes inalcançável pela literatura”.


Não vamos ser insensíveis: fazer alusões ao filme na capa do livro é uma estratégia comercial eficaz. Em termos práticos: um escritor que já teve sua obra adaptada um punhado de vezes me disse certa vez que a venda de seus livros aumentava em cerca de 30% quando a capa era associada ao filme. Retornando ao texto de Marcos Andrades Neves, esse aumento na procura do público se explica:


“Para o historiador da arte Arnold Hauser, o cinema representou a primeira tentativa de produzir arte a um público de massa. Este público, significativamente maior que o literário, aproxima-se da literatura por meio de adaptações cinematográficas que encontram seu reflexo nas capas de novas edições. Todos os exemplos compartilham ao menos dois pontos em comum: utilizam estratégias de legitimação em sua capa, e tais estratégias nem sempre dizem respeito à literatura. Aos pontos em comum, há igualmente dois níveis de observa¬ção para explicá-los: em sua camada mais sensível, as alterações na capa são uma forma de fornecer ao leitor informações necessárias para incentivar a compra do volume, assim como alcançar um público antes inalcançável pela literatura. (...) Antes de apenas informar e atrair os leitores, a capa de um livro – por meio de sua iconografia – expõe relações entre linguagens artísticas e evidencia processos legitimadores internos e externos”.


A versão completa do artigo do Marcos, publicado no terceiro número da Cadernos de Não-Ficção, pode ser lido online ou baixado em PDF em http://www.naoeditora.com.br/projetos/.

Em tempo: a arte da capa da edição econômica de Reparação é de Mateus Valadares e Kiko Farkas, do Máquina Estúdio.

Vai que é tua, Keira
O que acontece quando, somado à estratégia comercial das editoras, temos uma questão de casting agregada à equação? O leitor britânico que, porventura, não simpatize com a Keira Knightley (o Selton Mello do cinema inglês) pode se sentir acuado. Antes que ela interprete todas as personagens femininas da literatura inglesa, o blog Caustic Cover Critic, em seu feudo contra a estratégia do movie-tie-in, praticamente montou uma Biblioteca Keira Knightley.


Eu particularmente gosto da atriz, mas imagino se todo escritor inglês, quando se põe a escrever, já começa a pensar “que personagem meu vai ser interpretado por Keira Knightley?”.

5 comentários:

Tuca. disse...

Acho que eles mudaram a foto de capa, então. No pdf com os lançamentos do mês que recebi, a foto era outra. Também bonita. Enfim, ficou bem boa assim também.

Samir Machado disse...

Oi Tuca,

Você tem ainda esse PDF contigo? Teria como mandar pra samir(arroba)naoeditora.com.br? Que daí atualizo com essa versão não utilizada.

Abraços,
Samir

Tuca. disse...

Oxe, tenho sim. Mando agora. Aí você vê se dá para utilizar. Abs.

Carlos André disse...

Pobre do Tolstói em suas edições futuras. Já anunciaram que Keira Knightley será a próxima Anna Kariênina - escolha que considero particularmente lamentável, mas bola pra frente...

Bucker disse...

Parabéns pelo blog, Samir! Sou capista e acompanho sempre.
Olha, acredito que do ponto de vista da literatura como arte, utilizar uma capa com imagens de filme é bem ruim.
O bom escritor, como todo artista, busca por meio da ficção alcançar algo mais real que a realidade, uma realidade ficcional carregada de ALTERIDADE. Esse é o propósito da arte (segundo Deleuze), tocar as pessoas, mas não é a emoção de um cartão natalino é um toque que transforma, abala as convicções, e não as escora.
A literatura em específico atua nesse caminho mental da imagem da palavra escrita até os confins da nossa imaginação. Quando colocamos a imagem do filme no meio desse caminho, limitamos uma série de construções mentais que as imagens já nos dão prontas.
Esse é o tipo de "facilitação" que nenhum artista deseja, que reduz o potencial transformador da obra.
Eu particularmente não gosto, em geral não compro capa de filme. Tenho a capa do Raul Loureiro no Reparação.
Mas entendo que venda, o público em geral gosta dessa "facilidade", por isso Paulo Coelho vende mais que McEwan.
Parabéns de novo!
Abraços,
Rafael Bucker

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